Na origem da
palavra “disparate” está um verbo latino que significa “separar”. Será assim
porque, provavelmente, uma coisa disparatada representa, num certo sentido, uma
quebra, uma separação, entre a realidade e a tolice. O Carnaval é a altura
própria para a sociedade ser complacente com os disparates que, em princípio só
durante três dias, cidadãos em grupos mais ou menos organizados fazem um pouco
por todo este País. Instala-se um caos, ainda que de forma relativamente
organizada em corsos e eventos públicos ou privados, num afinal também
simulacro de caos. Tudo a fingir de forma muito séria. Cada vez me convenço
mais que uma grande parte da Humanidade adora um simulacrozinho, um fazer de
conta que se é não se sendo, confundindo-se então, nem que seja ao de leve, a
realidade com a ficção, separando-se o que existe do que se finge que está lá.
O que não deixa, portanto, de ser também um disparate e, por extensão, uma
tolice.
Face a uma
constatação deste género, talvez não fosse mal pensado estabelecermos algumas
regras para o uso do disparate. Melhor ainda, para o multiuso do disparate.
Depois de muito pensar sobre diferentes versões de um conjunto de termos de referência
que pudessem regular direitos e deveres dos disparates e seus praticantes, eu
que até sou adepta de que as regras devem ser o mais abrangentes possível, e
por vezes por isso algo detalhadas (porque a lei defende os fracos e porque se,
ao fim de algum tempo se verificar que a lei não serve mude-se a lei,
justificando), desisti. Afinal, tal
tarefa que começava a tomar proporções hercúleas tinha-se iniciado já em
período carnavalesco de caos consentido, com o simulacro a funcionar legalmente
em pleno, e não me parecia tão grave a minha infeliz incapacidade de a levar a
cabo. Um simulacro devidamente enquadrado pelo Carnaval.
Mas como
também não sou de me ficar assim, rendida à desistência fácil (nem à
resistência teimosa, diga-se de passagem), resolvi dar uma volta por aforismos
de alguém que viesse lá da terra onde o Carnaval é quente e tirar a roupa
abanando as carnes, fazendo tremer os sentidos ao sabor do Sol e das estrelas
da noite, onde não é disparatado fazer desfiles de gente semi-nua como acontece
quando, com as temperaturas de Inverno, centenas se passeiam por aí nessas
terras geladas como se estivessem em pleno Sambódromo. E encontrei esta frase
da autoria do brasileiro Guilherme de Guimarães (um pseudónimo, o que é também
um simulacro consentido num certo meio), que terá dito o que ficou escrito: “É
preciso ter em si mesmo suficiente confiança para não desanimar... e
desconfiança bastante para não fazer tolices.” Isto pareceu-me um excelente
conselho, talvez até podendo constituir um parágrafo introdutório a um
regulamento sobre como lidar com a tendência para o disparate. Seria pelo menos
bom para quando me vêm com argumentos que justificam atropelos de regras, onde
encontro disparates, dizendo que já se faz assim há muito tempo, que sempre se
fez assim, que é, afinal de contas, uma questão de tradição. E lembrei-me ainda
ter lido algo sobre esse tipo de argumentação. Lá encontrei o que também dizem
que deixou escrito Einstein, que “ a tradição é a personalidade dos imbecis”. Resolvi
parar por aqui, pois apesar das tréguas, a coisa podia assumir contornos de
violência e anti-civismo, o que não era de todo a minha intenção.
Assim sendo, faço votos de um bom Carnaval, que se
divirta quem se queira divertir, e sem precisar de arranjar desculpas nem para
um disparate inofensivo, nem para uma oportunidade de encobrir uma tolice
pegada.