13.2.18

Disparates; tolices e tradição

Na origem da palavra “disparate” está um verbo latino que significa “separar”. Será assim porque, provavelmente, uma coisa disparatada representa, num certo sentido, uma quebra, uma separação, entre a realidade e a tolice. O Carnaval é a altura própria para a sociedade ser complacente com os disparates que, em princípio só durante três dias, cidadãos em grupos mais ou menos organizados fazem um pouco por todo este País. Instala-se um caos, ainda que de forma relativamente organizada em corsos e eventos públicos ou privados, num afinal também simulacro de caos. Tudo a fingir de forma muito séria. Cada vez me convenço mais que uma grande parte da Humanidade adora um simulacrozinho, um fazer de conta que se é não se sendo, confundindo-se então, nem que seja ao de leve, a realidade com a ficção, separando-se o que existe do que se finge que está lá. O que não deixa, portanto, de ser também um disparate e, por extensão, uma tolice.

Face a uma constatação deste género, talvez não fosse mal pensado estabelecermos algumas regras para o uso do disparate. Melhor ainda, para o multiuso do disparate. Depois de muito pensar sobre diferentes versões de um conjunto de termos de referência que pudessem regular direitos e deveres dos disparates e seus praticantes, eu que até sou adepta de que as regras devem ser o mais abrangentes possível, e por vezes por isso algo detalhadas (porque a lei defende os fracos e porque se, ao fim de algum tempo se verificar que a lei não serve mude-se a lei, justificando), desisti.  Afinal, tal tarefa que começava a tomar proporções hercúleas tinha-se iniciado já em período carnavalesco de caos consentido, com o simulacro a funcionar legalmente em pleno, e não me parecia tão grave a minha infeliz incapacidade de a levar a cabo. Um simulacro devidamente enquadrado pelo Carnaval.

Mas como também não sou de me ficar assim, rendida à desistência fácil (nem à resistência teimosa, diga-se de passagem), resolvi dar uma volta por aforismos de alguém que viesse lá da terra onde o Carnaval é quente e tirar a roupa abanando as carnes, fazendo tremer os sentidos ao sabor do Sol e das estrelas da noite, onde não é disparatado fazer desfiles de gente semi-nua como acontece quando, com as temperaturas de Inverno, centenas se passeiam por aí nessas terras geladas como se estivessem em pleno Sambódromo. E encontrei esta frase da autoria do brasileiro Guilherme de Guimarães (um pseudónimo, o que é também um simulacro consentido num certo meio), que terá dito o que ficou escrito: “É preciso ter em si mesmo suficiente confiança para não desanimar... e desconfiança bastante para não fazer tolices.” Isto pareceu-me um excelente conselho, talvez até podendo constituir um parágrafo introdutório a um regulamento sobre como lidar com a tendência para o disparate. Seria pelo menos bom para quando me vêm com argumentos que justificam atropelos de regras, onde encontro disparates, dizendo que já se faz assim há muito tempo, que sempre se fez assim, que é, afinal de contas, uma questão de tradição. E lembrei-me ainda ter lido algo sobre esse tipo de argumentação. Lá encontrei o que também dizem que deixou escrito Einstein, que “ a tradição é a personalidade dos imbecis”. Resolvi parar por aqui, pois apesar das tréguas, a coisa podia assumir contornos de violência e anti-civismo, o que não era de todo a minha intenção.

Assim sendo, faço votos de um bom Carnaval, que se divirta quem se queira divertir, e sem precisar de arranjar desculpas nem para um disparate inofensivo, nem para uma oportunidade de encobrir uma tolice pegada.