Estou
quase a acreditar num milagre. Incrédula rendida que sou perante todas as
razões tão bem montadas que justificam a existência de uma entidade superior
que nos comanda a Vida, oiço-as com atenção quando dizem respeito ao uso que
fazemos de um livre-arbítrio que nos terá sido concedido a todos, nós os seres
humanos, indiscriminadamente. O livre-arbítrio é o espaço e o tempo que, nessas
narrativas e seus comentários, uma qualquer entidade superior nos concedeu para
que nós, os seres racionais, pudéssemos, dentro das nossas impostas e fatais
limitações, escolher como utilizar o nosso tempo em Vida e o caminho que lhe
vamos dando. Fácil acreditar nisto, quando se percebe o que isto quer dizer:
que “não adianta olhar para o Céu com muita Fé e pouca luta”, como diz o cantor
poeta com nome próprio de anjo.
O
que qualquer religião faz neste universo de que conhecemos uma parte tão
pequenina, mas tão valiosa, é uma tentativa de regular a Vida que cada um de
nós nela vive. E como o fazem de formas tão várias mas tão irrepreensíveis nos
textos que as constituem e que são o fundamento de cada uma delas! Mesmo
aquelas cujo texto circula ancestralmente num suporte apenas feito da memória
que passa de boca em boca e que as outras, as dos livros e das instituições bem
organizadas, tantas vezes chamam seitas, confundindo-as com o sempre presente
nas suas próprias crenças tão documentadas, com o fanatismo.
Esta
semana não podia deixar de falar em Manchester. E dessa noite de massacre, onde
sobretudo o de crianças e jovens nos choca mais, parti para uma noite já com
alguns anos (corria talvez o ano de 1999) em que de Timor nos chegavam as
imagens da fuga de famílias, durante a noite, para as montanhas e em que uma
criança, ao cair, se controlava num choro mudo. Tão diferente do que estamos
habituados a ouvir às nossas crianças quando fazem um simples arranhão... Uma
prova de que mesmo pequeninos nos habituamos a tudo, infelizmente até àquilo
que está mal, faz sofrer e não devia ser uma fatalidade designada por uma
entidade superior que nos comandaria a Vida. Vamos aprendendo um novo código.
É um
código de sobrevivência o que se continuou a escrever em Manchester. Um código
que reage ao outro código, o que também vem nas narrativas fundadoras de qualquer
religião ao lado da crença que dá muito mais valor ao que encontraremos depois
da Vida do que durante a Vida. Um código de resistência a roçar a banalização,
este que aprendemos. Mas um código que coopera com os outros, os das
instituições, se calhar com prazo de validade, pois vamos tendendo,
perigosamente, a perder a confiança com a persistência dos massacres. Uma
cooperação que não pode fazer delas, das instituições, uma entidade igual
àquela entidade superior em que alguns, muitos, crêem. Mas cooperar passará
também por cada indivíduo, em lugares e tempos vários e com forças diferentes,
fazer parte delas, dessas instituições. E a isso também se costuma chamar
Política ou Cidadania.
Estou
quase a acreditar num milagre que não é bonito de imaginar, nem transmite fé,
nem esperança, embora aconteça, felizmente, muito mais vezes do que certos
acontecimentos, inaugurais ou actuais, em que alguns nos querem fazer acreditar, e que relatam em tão bem construídas, demasiadas vezes treslidas, narrativas. É
o milagre de encontrar quem use o livre-arbítrio, a que eu gosto também de
chamar inteligência, para fazer o que qualquer entidade criadora superior, a
existir, deverá ter como desígnio para as suas criaturas: valorizar toda esta
Vida que conhecemos, a nossa mas também, e tanto, a dos outros.