A discussão sobre a eutanásia ou o suicídio assistido é um
assunto fracturante, tanto na esfera pública da sociedade como no lugar mais
íntimo da consciência do indivíduo. E como acontece com todos os temas fracturantes,
quer-me parecer que requer, mais ainda do que nos outros, que se pesem os prós e
os contras nas implicações de legislar sobre o assunto. Apesar de já ter a
minha opinião formada e segura, pareceu-me bem reflectir com os que me ouvem e
lêem sobre algumas hipóteses para argumentar sem alimentar ódios nem acusações
de parte a parte, que é o que as campanhas para os referendos acabam por
acicatar na guerra das audiências e dos shares.
Para começar a reflexão precisamos de perceber que não se
está a avaliar entre uma coisa boa e outra má, mas entre duas coisas más.
Tratar-se-á por isso de uma escolha da qual se pode, eventualmente e sem ânimo
leve, permitir a menos má. Depois é preciso percebermos que se trata de lidar
com a Vida e de como a pensamos do princípio ao fim, passando pelo meio.
Perceber como pensamos a Vida na relação da nossa com a dos outros, para além
do seu valor absoluto que ideologias ou crenças nos ensinam e constroem
enquanto pessoas. Trata-se ainda de permitir, sem promover, que se escolha
fazer um dos caminhos para chegar a um mau sítio, de uma maneira ou de outra.
Um sítio inevitável, de que temos consciência desde quando começamos a usá-la
para nos pensarmos, o que não acontece com mais nenhum animal. E como os há,
aos animais, que reagem instintivamente, ora lutando contra o fim quando
pressentem o perigo, ora em situação idêntica, por exemplo matando as suas
próprias crias. Padrões de comportamentos naturais.
Depois, teremos de perceber que só estamos a colocar esta
opção porque é a mesma ciência que nos permite prolongar a Vida que nos
permitirá interrompê-la, de forma apesar de tudo mais civilizada do que levar
um velho às costas até às montanhas (uma lenda retratada num filme japonês de
culto intitulado A Balada de Narayma).
O mesmo gesto contra a natureza que nos empurra do início ao fim. Não será, no
entanto, de estranhar que quem se dedicou, pela ciência, a salvar vidas objecte
a pôr-lhes fim. Não o fará pela ciência mas pela fé, que é outra maneira de
usar a consciência e ficar de bem com ela.
Finalmente, e ponto que me parece ser o mais importante para
uma decisão a aplicar em assunto fracturante no âmbito da sociedade, o facto de
se legislar despenalizando e dando condições, neste como noutros casos em que a
ética porque se trata da Vida está implicada, não obriga ninguém a optar pela
situação despenalizada.
Vergílio Ferreira, quando iniciou a escrita do romance Para Sempre, escreveu no seu diário: «Salvar
a vida, até onde é possível, mesmo à custa da morte. É o acto do suicida.» E é
em nome de uma dignidade que se encontre em determinada situação ao não
prolongar uma inevitabilidade para além dos limites que se deseje, porque o
sofrimento não é um hino à Vida, que eu concordo em que pôr-lhe fim
conscientemente será, para alguns, esse único acto de dignidade que se
conquista e que, graças à evolução da civilização, se lhes pode permitir. Por
muito que me custe e doa lembrar os que, antes do Tempo, foram arrancados à
Vida.