São cada vez
mais as notícias sobre vítimas, mortais, de violência doméstica. No entanto não
sei se há mais vítimas agora do que há 40 anos atrás, com as devidas proporções
demográficas tidas em conta. São, é sem dúvida, mais as discussões em espaço
público sobre o assunto. Está o problema centrado na inadmissível violência,
que alguns fazem recair sobretudo numa questão de género o que me parece já
redutor, e que é tanto mais inadmissível, sendo-o desde sempre, quanto mais o Homem
(assim com maiúscula) se afasta da besta num rumo desejável da civilização.
Mas a
questão também se centra, e de forma muito vincada, na relação fronteiriça, e
tantas vezes violada por “dá cá aquela palha” e alimentando o que de pior há em
nós, entre o público e o privado. Por isto, a violência em domínio privado
passou a ser considerada crime público, ainda que só há uma dúzia de anos, e
não sem controvérsia, aqui em Portugal. Nietzsche afirmava, na sua obra «Para
além do Bem e do Mal», que “Em homens duros a intimidade é questão de pudor - e
algo de precioso” o que justificará a denúncia de uma situação da intimidade,
ainda que de outrem, para o domínio público como, ainda para muitos, um ato de
fraqueza, semelhante à da delação, e não de coragem. Também neste campo as
fronteiras são difíceis de medir e julgar, com parâmetros de Bem e Mal à
mistura e a baralhar o comum mortal.
A
preciosidade da vida íntima ou pessoal, característica que Nietzsche lhe
atribui na sentença que citei, é precisamente o que tantas vezes leva à
hesitação da denúncia, pelos próprios, e aí é queixa, ou terceiros. Queixa e
denúncia são substantivos negativos, sendo até o diminutivo “queixinhas”
sinónimo de denúncia. Substantivos tutelados por um outro maior, e tão louvado
e usado, que se adjetiva inúmeras vezes para fazer descer ao caso particular: o
amor. E muitas vezes, só quando o amor a outros se sobrepõe ao amor-próprio ou
até mesmo, porque não admiti-lo ao amor por quem maltrata, só aí a fraqueza se
faz coragem, e se disfarça com o medo.
O que me
parece certo é que, para além das patologias que só encontram possível cura
junto dos médicos, mais uma vez é na educação que se previnem os casos,
ligeiros ou extremos. Ambos são de violência, que acontecem no espaço privado
das famílias e que, na maioria dos casos, têm conotações e justificações com a
intimidade sexual de cada um. E para que também não se caia na tentação do
extremo oposto que, afinal, vem depois legitimar o descrédito das “queixinhas”.
É, por isso, tão lamentável existir quem, com responsabilidades políticas,
pareça continuar a achar que a educação sexual na escola pública, tantas vezes
confundida porque quem não conhece os seus conteúdos, e que assenta, quando é
bem feita, na sólida base da educação dos afetos, seja ainda matéria
controversa e, por isso, a rejeitar e não a aprofundar. Como também ouvi esta
semana que passou, isso seria deixar espaço a que para muitos, talvez ainda uma
maioria dos jovens no mundo inteiro, a educação sexual se faça atrás do
pavilhão da escola, e com ela a dos afetos. Pode, afinal, tratar-se de uma
questão quase geracional, talvez.
Agora que o
Natal se aproxima e a quadra já se vai revestindo desse ambiente que promete o
amor e as tréguas entre todos e em geral, nem que seja só como interrupção do
resto do tempo e as rotinas prossigam dentro de momentos, talvez a tolerância
ganhe outra definição. Mais próxima da intolerância com pactos de silêncio
perante situações que sendo da vida íntima, uma tolerância despudoradamente viva
na denúncia sem estigmas de delação, mas única e exclusivamente com pudores,
porque também os deve haver, de justiça. É que nestes casos em que tantas vezes
só podemos julgar pelas aparências, porque tudo se passa no espaço privado,
quando chegamos a saber e calamos, consentimos.