Costuma dizer-se que no início das suas funções os
governantes entram num período a que se tornou vulgar chamar “estado de graça”.
É uma expressão curiosa, envolta em misticismo e numa aura quase religiosa, que
parece transformar o eleito, ou a eleita, numa espécie de desejado, de
salvador, de messias até. Isto, naturalmente, acontece num raio que atinge os
que fizeram e ajudaram a fazer a escolha, e ultrapassa quer em duração, quer em
intensidade, a euforia, também natural, do momento da vitória. O dia seguinte é
longo e lânguido. E quando o ambiente é verdadeiramente democrático, para o
qual os adversários também muito contribuem, o dia seguinte prolonga-se e
goza-se como um dia de domingo, por mais do que o tempo de uma rotação da terra
sobre si mesma.
A escritora brasileira Clarice Lispector escreveu, em 1968, a
propósito deste estado o seguinte: «Quem
já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à
inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam
com arte. O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse
apenas para que se soubesse que realmente se existe. Nesse
estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma
lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve.»
Por acaso, acho que, apesar do que disse, no caso dos
governantes a coisa dá-se mais como com os carros novinhos em folha e que
acabados de sair do stand já estão a
desvalorizar. Não é uma visão tão poética e espiritual, bem sei. Mas, desde que
passei pela situação, que também sei que a poesia e a espiritualidade têm muito
pouco espaço na vida de um ou uma governante. E vejamos também que durante
algum tempo, mesmo desvalorizada, a viatura nova continua a brilhar e a
comportar-se como se esperaria.
E por isso, este estado de graça de que falam comentadores
mais ou menos encartados, é mais um estado de torpor, que rapidamente se altera
com a primeira medida importante que se toma. O estado de graça é uma espécie
de período de licença especial em que quem a ele assiste, sem paixão ou
comprometimento, aguarda pela confirmação, ou não, do verdadeiro estado em que
tudo vai ficar ou mudar. Julgo até que é todo o discurso propagandístico que
projeta futuros num exercício puramente de estilo que, em muitos casos, faz
prolongar o estado de graça.
No último ato eleitoral, e refiro-me obviamente à realidade
de Évora que é a que conheço melhor, quem tenha tido a vontade e correspondente
persistência para ler os diferentes programas eleitorais, que para o vencedor
será ou deverá ser um programa de governo, terá reparado que os futuros foram,
se calhar pela primeira vez em quase 40 anos, pouco prometedores. A maior
parte, para não dizer todos, não deixa ver ao cidadão comum o que vai ser
diferente. Talvez por isso, mais de metade tenha ficado em casa, porque afinal
uma promessazita mais audaz em campanha eleitoral fica sempre bem! Quererá isto
dizer que o estado de graça será mais curto do que habitualmente? Ou, pelo
contrário, se prolongará à sombra de passados que, afinal, não se conseguem
resolver? Aguardemos de forma leve e tranquila, que é o que o estado de graça
dos outros nos permite e não nos deixa senão senti-lo também.