15.10.13

Estado de graça

Costuma dizer-se que no início das suas funções os governantes entram num período a que se tornou vulgar chamar “estado de graça”. É uma expressão curiosa, envolta em misticismo e numa aura quase religiosa, que parece transformar o eleito, ou a eleita, numa espécie de desejado, de salvador, de messias até. Isto, naturalmente, acontece num raio que atinge os que fizeram e ajudaram a fazer a escolha, e ultrapassa quer em duração, quer em intensidade, a euforia, também natural, do momento da vitória. O dia seguinte é longo e lânguido. E quando o ambiente é verdadeiramente democrático, para o qual os adversários também muito contribuem, o dia seguinte prolonga-se e goza-se como um dia de domingo, por mais do que o tempo de uma rotação da terra sobre si mesma.
A escritora brasileira Clarice Lispector escreveu, em 1968, a propósito deste estado o seguinte: «Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte. O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe.  Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve.»
Por acaso, acho que, apesar do que disse, no caso dos governantes a coisa dá-se mais como com os carros novinhos em folha e que acabados de sair do stand já estão a desvalorizar. Não é uma visão tão poética e espiritual, bem sei. Mas, desde que passei pela situação, que também sei que a poesia e a espiritualidade têm muito pouco espaço na vida de um ou uma governante. E vejamos também que durante algum tempo, mesmo desvalorizada, a viatura nova continua a brilhar e a comportar-se como se esperaria.
E por isso, este estado de graça de que falam comentadores mais ou menos encartados, é mais um estado de torpor, que rapidamente se altera com a primeira medida importante que se toma. O estado de graça é uma espécie de período de licença especial em que quem a ele assiste, sem paixão ou comprometimento, aguarda pela confirmação, ou não, do verdadeiro estado em que tudo vai ficar ou mudar. Julgo até que é todo o discurso propagandístico que projeta futuros num exercício puramente de estilo que, em muitos casos, faz prolongar o estado de graça.

No último ato eleitoral, e refiro-me obviamente à realidade de Évora que é a que conheço melhor, quem tenha tido a vontade e correspondente persistência para ler os diferentes programas eleitorais, que para o vencedor será ou deverá ser um programa de governo, terá reparado que os futuros foram, se calhar pela primeira vez em quase 40 anos, pouco prometedores. A maior parte, para não dizer todos, não deixa ver ao cidadão comum o que vai ser diferente. Talvez por isso, mais de metade tenha ficado em casa, porque afinal uma promessazita mais audaz em campanha eleitoral fica sempre bem! Quererá isto dizer que o estado de graça será mais curto do que habitualmente? Ou, pelo contrário, se prolongará à sombra de passados que, afinal, não se conseguem resolver? Aguardemos de forma leve e tranquila, que é o que o estado de graça dos outros nos permite e não nos deixa senão senti-lo também.