O escritor americano Mark Twain é dos mais presentes em
compilações de citações, e também daqueles que mais humor põe nas suas
sentenças, muitas delas retiradas de romances e novelas. Terá escrito um dia
que "se estiver zangado, conte até cem; se estiver mesmo muito zangado,
blasfeme."
A blasfémia é também coisa do
sagrado, ou por outra, é coisa contra o sagrado. Mas nos tempos de ciberespaço
que atravessamos, a blasfémia é, ou podia ser, apenas o grau mais elevado de
quem se ofende porque se sente alvo de crítica, contestação, insulto ou
difamação. Assim, em diferentes graus que arrumo em crescendo, numa escala
muito minha. Crítica, contestação, insulto, difamação.
Se a crítica e a contestação me
parecem naturais, e por isso quando somos alvo delas podemos ficar apenas
um-bocado-chateados-mas-adiante, já o insulto e a difamação são uma blasfémia
para quem deles é vítima. Só uma raiva ou um descontrolo muito grandes fazem
com que uma crítica ou uma contestação se transformem em insulto ou em
difamação. Mas começa a acontecer de forma cada vez mais frequente e a vários
níveis.
A escalada da violência verbal, em
espaço público, começou no momento em que dizer a alguém que está a mentir e
não ser punido por uma acusação que se prove não ser verdade passou a dar muito
trabalho e, por isso, chegar o encolher de ombros, ou a explicação que não
querem ouvir ou, lamentavelmente, dar uma resposta a descer ao nível. Aqui
chegados, até se deu azo a que não se distinga quem mentiu mesmo, de quem
apenas tomou uma decisão com consequências que se prevêem de desfechos
diferentes por quem ofende e por quem é ofendido. E o insulto passa a servir
não apenas para desmascarar, deixando de ser insulto e passando a acusação, mas
simplesmente como forma baixa de contestação.
A blasfémia dessacralizou-se na
mesma medida em que o insulto se popularizou. E acho que foi um direito que se
conquistou, considerar-se blasfémia o que é dirigido a pessoas e não a deuses. O
insulto popularizou-se tanto que se massificou e tem os seus momentos de
explosão em manifestações que também seguem essa “lei”, chamemos-lhe assim, de
proporções. Quanto mais o grupo ou a multidão se compõe de gente que
individualmente se sente atacada, maior é a agressão verbal. Por isso também as
manifestações têm sido não as da ordem, a dos sempre zangados com tudo e todos,
e que deviam contar até cem, para passaram a ser momentos de catarse em que o
desespero se alivia na blasfémia.
E aqui acode-me um outro inglês, o
poeta Ralph Hodgson, que terá afirmado que "as blasfémias proferidas em
estado de angústia valem o mesmo que as orações." É o perdão em tempos
de angústia.
Até para a semana.