21.2.23

O umbigo

O umbigo distingue os mamíferos dos restantes seres vivos. O umbigo é a prova evidente de que a dependência é o nosso pecado original. Se calhar, até foi por isso que um dos primeiros poetas do Universo pôs uma maçã como objecto que concentra em si várias tentações, de que a maçã não tem culpa nenhuma. A não ser aquela cova perfeitinha, com um caulezinho semelhante ao cordão que nos prende ao passado mais recente. Não foi uma laranja, que parece ter uma hérnia naquele umbigo saliente. (E ainda haver gente para quem o belo e o juízo estético parecem supérfluos, anódinos e isso ser desconsiderado…. Ou, pior, motivo de elogio da simplicidade, humildade e afins elogios interesseiros; é coisa, isto do apoucamento do estético, que me entristece um bocadinho, enquanto crente no progresso da Humanidade.)


A nossa cicatriz comum - que não dói na memória e, por isso, não nos ameaça as emoções como outras mutilações que nos ensombram a sobrevivência - o umbigo humano tanto nos aproxima como afasta dos umbigos de outros mamíferos. Aproxima-nos na irracionalidade dos actos, afasta-nos na consciência da finitude da vida que altera as formas de viver o medo e reagir ao perigo. Como não nos lembramos muito, nem muitas vezes, do benigno remate que temos no nosso corpo, também caímos no hábito de ver o mundo, os seus problemas e as propostas de soluções ou remedeios, como se o mundo tivesse o epicentro no nosso umbigo muito nosso.


Por exemplo, e mantendo-me inspirada pela actualidade e nas referências ao mundo do pomar, as reacções dos diferentes lobbies e afectados ao chamado pacote da habitação, embalado na semana passada pelo Governo e que está agora em discussão pública, é só mais um caso desta tendência congénita. Sobre um tema que se enreda em várias frentes, que inclui fatias de direitos humanos e pevides de negócios, outra coisa não seria de esperar, mesmo apresentado em casca grossa ou pele de sapo.


Nesta matéria em concreto, as posições a que devemos prestar atenção, se quisermos largar umbigos, são as ideológicas. E estas são difíceis de expor porque se prestam a condicionantes e leituras de ordem moral, onde o justo e o injusto têm dificuldade em poisar todos num ou noutro prato da balança sustentada pela senhora de olhos vendados. A paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação, e todos perceberão o refrão metafórico destas palavras, são cordas que limitam o ringue, polígono mais do que um simples quadrado onde actua essa outra alegórica senhora dos olhos vendados, a tratar de que os encostados às cordas não sejam aniquilados.


Olhando para o meu umbigo, o que me dava mesmo jeito, e se calhar a muito mais gente, era que neste pacotão da habitação houvesse lá qualquer coisa a pôr regras nas empresas que gerem condomínios. Vou procurar. Bom Carnaval e até para a semana.