4.10.22

O véu diáfano da hipocrisia

A situação conflituosa no Irão é um sinal doloroso do impacto da globalização cultural.  Doloroso e agridoce, embora mais “agri” que doce. Demorou a instalar-se, talvez o tempo de uma geração, entre a generalização crescente da comunicação e da informação a circular mais livremente entre cidadãos, a consciência de que há diferenças tradicionais identitárias que não correspondem ao que consideramos hoje humanismo. Não se trata já só sequer de feminismo, embora seja bom rever-se a enorme importância deste movimento, no fundamental, sobretudo quem considere que ser feminista é ver em qualquer homem um agressor. Não é.

Se há décadas foram surgindo, de forma algo inorgânica, denúncias da retrógrada condição feminina vivida em nações e comunidades que, para tal, evocam leis assentes pela religião constituída como instituição, a geração de jovens dos nossos dias, muito graças ao “bright side” da Internet, não me parece disposta a baixar os braços ou deixar de dar o peito às balas pelas hipócritas tresleituras de textos chancelados como divinos. Que a lute continue,  em nome de um progresso humanista e para que os que nela tombaram não o tenham  feito em vão. Um argumento, de resto, muito usado nas vidas dos santos mártires.

E debruçados sobre o hijad, o véu islâmico, poder-se-á continuar uma mais longa conversa a propósito da reavaliação do peso da religião, organizada em instituições, na vida de indivíduos e sociedades. Foi, de resto e assinalando o facto de estarmos próximos do 5 de Outubro, ao que assistimos no caso dos alunos de Famalicão na implicância dos seus pais com as aulas de Cidadania. 

Um assunto que sucede há séculos, de acordo com a organização Opus Dei, tão conservadora como os puritanos pioneiros que chegaram à América ou os reguladores das madraças islâmicas, ao dizer, na sua página web, que se observa “uma tendência nos poderes públicos, que se vem manifestando em muitos países, pelo menos desde o século XVIII, a assumir de modo cada vez mais exclusivo a função educativa, atingindo nalgumas ocasiões níveis de monopólio quase total da escola”.  

Uma forma de estar nos dias de hoje tão estranha como ineficaz, na minha opinião, que não previne a infelicidade nem das almas, nem dos “rebanhos”, nem leva a que mais sigam os caminhos saudáveis do humanismo: os do respeito pelo livre arbítrio consciente, também e sobretudo, da presença de outros na nossa vida em sociedade. 

É que fica claro que os véus não tapam o pecado de quem os usa, mas o de quem não tem sobre si o domínio de controlar uma bestialidade que pode reconhecer. E por isso evoca o nome forte de um Deus, ao abrigo da lei da hipocrisia que, por fraqueza, escreveu.