14.6.22

O 10 de Junho

 Parece-me que, por esse mundo democrático fora, a maior parte dos feriados oficiais, não religiosos e que simbolizam perfis identitários nacionais, serão datas que correspondem ao final de conflitos que marcaram transições de regime ou independências conquistadas. O 10 de Junho parece-me, então e seguindo a mesma lógica, uma bizarria. 


Uma data medida a olho ao homenagear o Poeta genial, no que teria sido o dia em que morreu. E o Estado Novo aproveitou para assinalar no calendário a parola expressão do ditador que definia Portugal “pequeno na Europa, grande e dilatado nos outros continentes”. Dia de Portugal, Dia da Raça, Dia das Comunidades Portuguesas, Dia da Lusofonia, parece até que do Anjo Custódio e de algumas Forças Armadas. Tudo, de cada vez ou ao molho, à pala do Camões. 


As medalhas (que na realidade são Comendas) guardavam-se para ser atribuídas a personalidades notáveis, neste dia, e são agora distribuídas quando calha bem ao Presidente da República. E os Comissários das Comemorações são escolhidos sem outro rigor que não seja o mesmo que dita o apoio ao “filho da terra” (vá lá, que este ano Braga teve sorte com o prestígio do convidado).  As comunidades exaltaram-se porque houve as que, como já se tornou normal, se sentiram excluídas e protestaram, demonstrando bem a incompreensão do valor simbólico da coisa. Para já não falar de ser um feriado que excita nacionalismos xenófobos, os que, entre a continência e a persignação, recordam tempos em que, depois dos avanços no Conhecimento e na Ciência que a Expansão significou, se cometeu a primeira maior vergonha da Humanidade: o esclavagismo. 


Com este estado de alma do contra, que uso ao abrigo do estatuto que tem uma crónica de opinião, estou capaz de sugerir que o 10 de Junho se transforme no Dia de Camões e das Artes Portuguesas pelo Mundo. Que as Artes sejam plurais, como a Arte, enquanto conceito, sabe ser. Que sejam as eruditas e as populares, que sejam as clássicas e as vanguardistas, que sejam as elitistas e as das massas. Para novos e velhos, para a menina, para o menino e para quem não quer, nem tem de dizer a que género pertence, para quem tem saudades de Portugal ou para quem quer ir morrer longe. 


Porque a Arte até pode falar português, mas é a forma de comunicação que ultrapassa a barreira da nacionalidade entre quem cria e quem frui. Haverá lá melhor cuidar do repositório de memórias e mais rentável fundo de investimento em imaginação e criatividade do que celebrar, partilhando em festa, a importância das Artes? As Artes que vivem da Estética, sem esquecer a Ética e a Política, que não procuram unanimismos, mas preferem provocar reacções, levantar dúvidas, suscitar críticas. Fica a ideia.