17.5.22

Os rascunhos que são “gordas”

 Há notícias que, de tão bizarras, merecem mais do que ser só isso: notícias. Deixando de ser só notícias, podiam mesmo é não ser nada, dando não apenas valor ao silêncio, como fazendo um favor à educação para a cidadania, evitando-se o exemplo nefasto. É que o exemplo, por mais voltas dadas às teorias para a educação, é o seu coração. Já os humoristas, que sabem que em palco não são exemplo para ninguém, dão o devido valor a estas notícias, dando-lhes exímio uso. Alguns até conseguem ser eleitos presidentes de países, e tudo.


Mas agora a sério, tão a sério como questões de vida e de morte: são notícias que merecem detalhe, explicações cabais, contraditório. Tudo com o mesmo nível de estridência que “as gordas” dos jornais têm; as que, toda a gente sabe, fazem babar uns e espumar outros. Sendo que uns e outros são, não apenas os que não têm possibilidades de saber mais, como os que sabem tanto que os mantêm nessas impossibilidades. E é o que vende, claro, no sempre negativo saldo para a informação e, por isso, com perdas na democracia; com lucro fácil só mesmo no tribalismo e na grunhice.

Uma das que saiu ultimamente foi a relação da eventual avaliação de desempenho dos médicos de planeamento familiar pelo número de abortos que conseguem, ou não, evitar. Para além de escabroso, por se ter focado numa questão que para além de médica tem questões morais que lhe estão associadas e são tema ainda fracturante na conversa de café, o caso tem todos os ingredientes para ser polémico - se for mesmo assim - ou para ser ridículo - se for só um rascunho.

Polémico, porque é potencialmente discriminatório se não se perceber o contexto e o “caso-floresta” em vez de nos concentrar no “caso-árvore”; no fundo, também por envolver três palavras suculentas que assanham discussões em várias mesas de café: avaliação, médicos e aborto. Ridículo, porque, nas diferentes negociações de qualquer assunto complicado e específico, é preferível que, em fases de discussão, de ensaio, o chamado “brainstorming”, as propostas não sejam logo publicitadas. A menos que a proposta vencedora logo em fase preliminar tenha razões para ser arrasada por quem se bateu, convictamente, contra ela. Nestes casos, servem bem como argumento de oposição. Assim cheguem a ser “gordas”.

E o que acabou por acontecer foi precisamente uma correcção do caminho levantado como hipótese e o assunto terá morrido, pelo menos nos termos em que foi criado. E com ele, com o caso particular do aborto e do planeamento familiar, os assuntos “médicos” e “avaliação” continuam no laboratório dos técnicos e especialistas. Talvez abortados. Ou à espera que se esqueçam deles. Ou, para o pior ou melhor, até que chegue uma “voz de dono”, de um político claro, que assuma esse odioso e arrisque a sua reputação, nas mesas de café e, outra vez claro, na urna dos votos que é onde também se enterram políticos.

Notícias podem, e devem, alertar os cidadãos. Melhores notícias permitem melhores alertas. Esta notícia que circulou foi mesmo sobre quê? Avaliação de médicos ou aborto? Talvez valha a pena perceber para que serve publicar “às massas” um rascunho.