12.1.21

João Cutileiro (Évora, sem título)

 Há uma semana a notícia da morte do João Cutileiro apanhou-me de surpresa. Mesmo sabendo-o já tão fragilizado, acreditei que aguentaria mais uma batalha. A última troca de palavras foi por escrito, e por isso breve, a contrastar com a tagarelice boa que gostávamos de fazer de quando em vez. Não me despedi dele com uma tagarelice e isso custa-me agora.


Também me parece que a partida de Cutileiro, depois de Mário Barradas há 10 anos, faz com que Évora se desfaça da qualidade de certas cidades de serem identificáveis como lugar vívido de quem a escolhe como ambiente propício à criação artística, por vezes regressando às raízes, e leve consigo para o resto do Mundo o reconhecimento e o seu nome. Évora arrisca-se a tornar-se cemitério de tempos gloriosos, mesmo que estes se colem a glórias de pessoas que não são de Évora mas que a escolheram com um afecto nem sempre recíproco.

Uma vez o João disse que gostaria que na sua morte eu lesse a “Canção de Guerra” do “primo”, o meu primo, José Régio. É o que farei hoje: ler o longo poema que o João Cutileiro sabia de cor e me recitou mais do que uma vez. Afinal, João, tu também deste voz às pedras que esculpiste. Como um Poeta. Obrigada por teres existido, tu que foste também para mim o João da tua Margarida, obrigada por existirem na minha vida.

“Lá pela noite morta,
Passaram salteadores à minha porta.
E os mimos de perfume, forma e cor do meu jardim
Que o meu sangue alimentava,
Mos destroçaram, ai de mim!
Mos destroçaram num furor de cobardia brava...
Levanta-te, minh’alma!
Eles armam-se, estão ébrios, são grosseiros...
Mas quem frágil e só, não é temível,
Se defende os seus filhos verdadeiros?
Deixá-los alardear de vencedores,
Os brutos salteadores dos teus canteiros.
Que tu és invencível!

Lá pela madrugada
(Erguera-me, e saudava a aurora perfumada)
Levaram-me a sentar praça,
Deram-me um número,
Uma farda e uma cor baça...
Levanta-te, minh’alma!
Não te acabrunhe a mochila,
Nem o brutal comando ou a cega marcha em fila.
Canta, baila, sorri.
Serva livre de Deus,
Filha dos céus!
... Que o batalhão há-de ir atrás de ti.

Lá pelo anoitecer,
Quando eu principiava a estarrecer,
Monumental,
Inofensivo,
Trouxeram-me comendas e medalhas...
Levanta-te minh’alma!
Grita-lhes que o laurel decorativo
Das suas homenagens
Não serve aos que lutaram em batalhas,
Andaram em viagens,
Penaram por incógnitas paragens,
E caem, quando já não podem nada,
Sobre a sua própria espada...

Lá pelo tempo adiante,
Quando, sobre os meus restos, o Aqui jaz
Pedir padre-nosso e avé-maria ao caminhante
E a caridade dum repousa em paz
Todos, pensando que eu os não ouvia,
No duro chão que o musgo morde, ergueram
Uma jaula de ferro e alvenaria...
Levanta-te, minha alma!
Deixa que os mortos fechem os seus mortos
Nos sepulcros caiados da cidade.
Contra tudo o que, vivo, já morria,
E, morto, ainda se aterra,
E pede avé-marias e confortos,
Declara a santa guerra
Da tua eternidade!”