25.6.19

Miguel, o instinto e o século XXI

Dez jovens resolveram praticar, e não apenas apregoar, a solidariedade. Aderiram a uma causa, integraram uma ONG e lançaram-se ao Mediterrâneo para salvar vidas. Suponho que uma ONG não seja um clube de jovens de bairro que se reúne num pátio abrigado entre prédios e que cumpra uma série de regras, legalmente enquadradas, para actuar ao lado de instituições governamentais que, como todos sabemos, também fazem turnos com o mesmo objectivo naquele mesmo Mar. Esses jovens cumpriram a missão a que se propuseram e, suponho outra vez, que não terão andado pelo Mar Mediterrâneo a piratear nem a conviver alegremente com traficantes de matéria ilícita. Como já aconteceu, em histórias até passadas ao cinema em que endinheirados jovens aventureiros ocidentais se metiam em “filmes” pouco recomendáveis em qualquer parte do Mundo e duramente penalizados nesses cenários exóticos. Eis senão quando, o governo de um dos países que mais tem visto chegarem até si esses milhares de refugiados, o que cria sérios problemas de acolhimento a requererem outras acções solidárias ao mais alto nível, começa a resolver o problema que tem entre mãos da forma que normalmente ouvimos propor como solução a, por exemplo, frequentes comentadores das Redes Sociais. Falo dos desabafos ao estilo “deixá-los morrer”, que “ficassem na terra deles, porque na nossa já temos problemas que cheguem” e outras exclamações dissonantes de quem talvez até vá a pé a Fátima, ou qualquer outro santuário. E alguns até, devotamente, montarão o presépio dos refugiados mais adorados, pelo menos uma vez por ano por alturas do Natal.

O Miguel Duarte foi um desses jovens. Só o conheci, provavelmente como a quase totalidade dos seus conterrâneos, por causa do vídeo no YouTube que circulou nas Redes Sociais, apelando em letras pequenas ao crowdfunding, suponho, mais uma vez, que para despesas com custas judiciais. Não podemos senão indignar-nos perante a ameaça que paira nos desenvolvimentos deste processo levantado por um Estado democrático da mesma União Europeia a que pertencemos (e mesmo isso devia ser só um detalhe), a Itália, a cidadãos que se organizaram para ajudar até iniciativas governamentais. Estranho apenas que a primeira vez que tenha ouvido falar do caso tenha sido através do Messenger. O que falhou entretanto? Ou não houve “entretanto” e o Miguel, como provavelmente ou não os outros nove elementos constituídos arguidos, lançou-se directamente para o YouTube? Será esta a nova forma para contornar burocracias na geração que “vive na nuvem”? A ser, e a par do bom humano instinto de salvar a vida do próximo em perigo, pode tornar-se num perigoso instinto de interacção com as instituições que se confunda e se nivele a outro tipo de iniciativas menos sujeitas a uma imperativa acção político-diplomática, como esta. 

O caminho aparentemente directo das Redes Sociais à Assembleia da República com bifurcação para o governo parece-me um curto-circuito perigoso e pouco recomendável. E sinal de que várias coisas, a vários níveis estão a falhar. E não apenas a eleição democrática dos “Salvinis” deste Mundo, supomos mais uma última vez, mesmo havendo ardilosas coincidências entre esses eleitores e certos utilizadores das Redes Sociais.