Passou definitivamente à eternidade
Agustina Bessa-Luís. Agustina foi, talvez, o nome maior vivo que muitos de nós
estudámos na escola. Ainda que ali, na escola, os escritores canónicos apareçam
muitas vezes como gente sem existência real, tornados eles próprios figuras de
uma ficção que é a vida daqueles que parece que não se cruzam nunca connosco,
nas nossas vidas. A Sibila foi o seu romance que a popularizou entre os
alunos, gostassem ou não da obra, o que muito depende, nestes casos, de quem é
seu mediador. Tive a sorte com quem me ensinou a lê-la. Aprendi com ela,
Agustina vertida em sibila naquele romance, o quanto o conhecimento do
comportamento das pessoas é um dom que podemos adquirir se para isso estivermos
predispostos. Adivinhar o que alguém vai dizer ou fazer resulta da capacidade
de saber ler esse e outros alguéns. Não sendo uma feminista, a sua perspectiva
sobre a realidade e os mundos que criou tinham essa marca do feminino. Dava
força às personagens-mulher e isso era colocá-las num centro de valores
maiores.
Vou deixar aqui o excerto dessa Sibila
de 1954, não porque tenha sido o livro de que mais gostei, mas porque é a
figura feminina que narrou, da sua galeria de personagens, que mais me marcou:
“Assim decorreu a noite, a vela ficou
reduzida, queimou uma borda do seu encaixe de papel, para continuar depois a
arder, imóvel, ovalada, como a chama do Espírito Santo. Quina abriu os olhos, e
disse em voz audível algumas palavras que não eram delírio, nem oração, porque
o tempo de oração estava no fim, e toda a sua alma se projectava num abismo
inefável, se dispersava para entrar na composição magnífica do cosmos. Um
sentido, nela, permanecia cintilante e que, portanto, sofria – era o amor, era
a sua inesgotável dádiva de ternura, que sempre timidamente desviara da terra,
para confiar ao mistério, ao que não é mesmo esperança, e que jamais trai e
engana. Os passos ouvia-os agora mais sonoramente; eles vinham, e todas as
portas se abriam à sua frente. Como repeli-los e como não amá-los também?
Sentiu que os joelhos se lhe esfriavam e como que um banho de gelo a ia
atingindo até à cinta, e subindo; as mãos guardavam algum calor, mas não as
movia mais. Um sopro mais brusco do vento fez entreabrir as portadas da
varanda, e Quina, num último olhar, abrangeu aquele céu esverdeado do amanhecer
e que era imenso, e que, como em ondas do espaço, continuava mesmo através dos
mundos, das estrelas vivas ou extintas. Os seus lábios emudeceram, e o som dos
passos deteve-se, por fim, sobre o seu coração. A mão, um instante depois,
deslizou e ficou fora do leito, com a palma voltada para cima, numa atitude
toda confiante no seu abandono, cortando de través o bastãozinho de luz que
escorria sempre, sereno, até à porta; via-se-lhe no pulso a mancha arruivada,
que ela, no mais inviolável segredo de si própria, acreditara sempre uma marca
de predestinação.”