23.4.19

Os Democratas

A viagem era curta e pouco amiga do ambiente. Curta porque foram muitos quilómetros feitos em pouco mais de 30 minutos. Pouco amiga do ambiente porque parece que, afinal, tudo o que vai para além do ritmo natural de um ser vivo pode ter um impacto negativo no que está à sua volta. Embora, depois da histeria gasolineira da semana passada, comece a pensar que antes de que a Natureza alguma vez retalie sobre o ser humano, já os seres humanos, de uma forma ou outra, se tramaram uns aos outros, aos poucos. E tudo bastante ajudado pela estupidez de muitos mais do que só aqueles que, nada tendo de estúpidos, apuram, com o aplauso desses, o dom da manipulação. Mas voltemos ao dia daquele vôo.

A revista mensal de Abril da transportadora aérea que nasceu nacional trazia, como é agora costume neste mapa contemporâneo em que aparentemente têm lugar de destaque todos os ofícios humanos que possam ser transaccionados, um texto de autor de literatura. Gonçalo M. Tavares, em formato edição bilingue, ocupava a página ímpar de um par delas que se enchia com título, autor e imagens trabalhadas. E o que me chamou a atenção, não fosse só o nome do autor que se reconhece com gosto, foi o título do texto: “Conversa sobre democracia, num banco de jardim”.

Quem conhece o Gonçalo M. Tavares reconhece sem estranheza a sua maneira de arrumar os sons nas palavras, as palavras nas frases, as frases no texto que criam ali no papel a imagem do que se vê e ouve naquele mundo imaginado. Mas ouvir uma conversa de jardim sobre Democracia em Abril, nas nuvens, pode ser surpreendente. Agradavelmente surpreendente. Depois recorda-se que, de um dos livros folheados do autor, aquele texto não era afinal estranho. O livro de onde saía era sobre uma viagem também, com conversas entre um eu e outro eu, parecia-me. Mas ali, numa revista que vende como destino de fugas paradisíacas lugares onde, apesar disso, vive e se governa gente, parecia estranho.

É o mês de Abril em Portugal e soa-me muito bem aquele pedaço de boa prosa em português a misturar-se com personagem de nome estrangeiro de referência mítica e a dizer coisas tão acertadas como só os que conhecem o poder das palavras sabem dizer e ler. E cito a frase que encerra o texto e que me acorda a por vezes tão dormente boa esperança ao aterrar em Portugal no cabo da viagem: “A decisão política de um democrata, diz Jonathan, é o ato do corpo que envolve mais sentidos humanos: além dos cinco habituais, ainda o sentido de justiça.” 

E eu apercebo-me de que não é com abraços, beijinhos e olhos em alvo numa máscara de lírio pendente na cara que se fazem os democratas. E que é o tempo de perceber porque, ainda assim, teremos de continuar a repetir: “25 de Abril sempre!”