Impossível não falar do caso mundial que vai servir
para, daqui a muito tempo, se explicar como era o mundo no tempo em que havia
um deus-dinheiro de pelo menos duas caras, como numa moeda, o bom e o mau, e
que o fazia girar; como era quando quem mandava no nosso dinheiro, aquele que
dávamos para um bem-comum que servia a priori para todos, eram os políticos que
elegíamos, na melhor das hipóteses; como eram os interesses privados que ditavam
o valor desse dinheiro, num mercado dependente de várias energias para o nosso
próprio conforto e de armas para que os que mandavam no nosso dinheiro pudessem
ser ainda mais poderosos; mas também como havia os que não tinham poder nenhum
sobre os nossos destinos, mas até os usavam, e viviam era mesmo empenhados em
tratar dos seus; e, finalmente, como era com quem não aproveitasse para fazer,
à escala do mundo em que vivia, o seu negociozinho tantas vezes disfarçado de
se tratar do melhor negócio para todos os outros. (Chama-se a isso burla,
parece-me.)
Digo-vos que não tenho pena nenhuma de não estar cá
para ver. Mas tenho uma espécie de vergonha alheia futura. Isto não é herança
que se apresente a ninguém, mesmo não sendo, ó crédulos, nenhuma novidade. É
porque parece mesmo que voltámos atrás no caminho do jovem sistema democrático,
que vigora apenas ainda numa parte considerável do Mundo mas não em todo, em
que a luta de classes que acompanhou a evolução civilizacional trazida, com
boas intenções e resultados, pela evolução técnica, se transformou numa
festança de copos entre todas as classes que, inebriadas por tanta coisinha boa,
gozam à tripa-forra. Ou é como se todos se armassem em peritos e desatassem a
abrir e a desfazer a máquina de que mais dependem para viver melhor em
sociedade e a quisessem remontar à sua exacta medida, borrifando-se na medida
de outros a que também serve.
«Toda a explicação pressupõe o conhecimento do
inexplicável, ou seja, do que seria mais interessante explicar» diz o Vergílio
Ferreira, e é também por isso que as explicações já não me servem de nada.
Sento-me em frente às notícias, como no cabeleireiro com as revistas, a saber o
Who’s Who desta história toda e a
fazer os julgamentos morais que outros já fazem do escândalo do jetset, a
partir de outros valores como os da família, do pudor, da intimidade. Já não me
interessa como é o esquema, já só me interessam as pessoas e, por isso, começo
a perceber que estou no limite de continuar a acreditar tanto como tenho
acreditado neste Homem (com maiúscula) feito à imagem e semelhança de um ou
mais Deus(es).
E perceber que os comportamentos de quem devia ter em
conta a sua exposição pública e ser sério, para generalizar aquela expressão,
até um pouco machista, de comparar quem o devia ser à mulher de César, replicam
a de quem vive na lama e faz de tudo, literalmente, para sobreviver, ou seja
por necessidade, deixa-me assim. É como a má moeda que dá cabo da boa moeda. Ou
a necessidade que aguça o engenho e, pelos vistos, a “chicoespertice”, para não
dizer pior.
Já agora, como as explicações também já não me
interessam, sabem a mais do mesmo e sabem mal, aproveito para partilhar convosco
esta história da mulher de César, que tem um nome, Pompeia, e não devemos
confundi-la com as outras duas que também foram mulheres de César. Numa
história em que, está bom de ver, o importante era o todo-poderoso não passar
por marido-enganado, uma história que ficou para a História mesmo não sendo
seguro de ter mesmo acontecido, conta-se que Pompeia vivia muito sozinha,
enquanto o poderoso marido passava meses fora e que nesse cenário perfeito surge
um nobre admirador de Pompeia que, numa noite, para conseguir aproximar-se
dela, entrou no palácio disfarçado mas acabou por se perder pelos corredores e
ser descoberto e preso. Levado a tribunal, e sendo o próprio César convocado para
prestar esclarecimentos, este declarou ignorar o que se dizia sobre a sua
mulher e julgou-a inocente. O “penetra” foi absolvido (pois a ocasião é que faz
o ladrão, não é verdade?) mas Pompeia não se livrou da fama e, dizem, do
repúdio do marido. Para quem o acusava de ser contraditório, ao defender a
mulher no tribunal e a condená-la em casa, ele teria usado a dita expressão de
que não bastava que a mulher de César fosse séria, era preciso que parecesse
séria. Enfim, as aparências contam há já muito tempo e com elas a arte de as
forjar. Não precisamos de mais explicações.