É normalmente quando os assuntos nos tocam de mais perto que
procuramos conhecê-los melhor. Ora é precisamente também nesses momentos e
nessas circunstâncias que é mais fácil deixarmo-nos toldar pela subjectividade
na análise e a, por vezes, ajustarmos os argumentos mais ao que nos interessa
do que à chamada “verdade dos factos”. E isto é natural no indivíduo da espécie
humana que vive desde sempre a interpretar tudo o que lhe acontece ou, não sem
alguma inércia intelectual, a acreditar em interpretações que lhe vão
apresentando mais ou menos à força.
Este tema não podia escapar ao autor, pensador e escritor,
que me inspira esta série de crónicas e que chegou a afirmá-lo da seguinte
forma: «Toda a cultura assenta na interpretação dos factos. Os factos em si
permanecem, sujeitos embora a emendas como factos que são. Mas não a sua
leitura.» O interessante nesta afirmação de Vergílio Ferreira é, não apenas ela
opor-se à vulgar sentença que diz que «contra factos não há argumentos», como
sugerir que os factos se podem emendar. Vamos pois, por partes, ver se nos
entendemos.
Utilizar-se o argumento da não argumentação de factos é
renunciar à possibilidade de qualquer tipo de discussão tratando os factos como
fatalidades. Como se todos os factos fossem actos isolados. Sê-lo-ão os factos
ilícitos, que são os que quebram as leis, ou os factos consumados, que são os
que não se podem reverter. Mas se os primeiros são julgados e a repreensão depende
da avaliação da sua gravidade, os segundos servem-nos para estarmos mais
alerta, da vez seguinte em que essa irreversibilidade indesejada se possa dar.
Na vida em sociedade, que é a que em princípio temos de viver, existem os
factos sociais. São aqueles em que se deve ter em conta as relações entre os
indivíduos e o ambiente colectivo em que decorrem, sendo impossível analisá-los
sem se observar a totalidade do seu desenvolvimento na sociedade. Os factores
tempo e espaço são, por isso, indissociáveis desta noção de factos. E são
também eles que nos permitem contarmos a nossa história e, consequentemente,
sugerir outras e mais leituras.
Que toda esta conversa vos faça pensar nos perigosos rebeldes
(sublinho a ironia) recentemente condenados em Angola como uma associação de
criminosos. Os jovens foram
detidos durante um encontro em junho do ano passado no qual partilhavam a
leitura do livro "Da ditadura à democracia". Rejeitaram sempre as
acusações que lhes foram imputadas e declararam em tribunal que os encontros
semanais que promoviam visavam discutir política e não promover qualquer acção
violenta para derrubar o regime.
E já agora, também espero que a conversa vos faça avaliar a
reacção de membros de uma associação ideológica que, tantas vezes parecendo
reclamar para si o monopólio da liberdade e o discurso da justiça social, se
escudam em factos que arrumam como inevitabilidades. E todos sabemos do que
estou a falar.