14.3.16

Manhas

Estamos num país em que daqui a pouco todos nós, sem monopólio só de alguns, vamos poder celebrar mais um ano Abril e a Liberdade. Estamos no Alentejo, onde antes se tingiu de vermelho uma população que gritava com a cor o que a voz calava. Estamos numa sociedade em que todos, e cada qual, ganharam a possibilidade e os meios de poder dizer ou escrever, poder-se fazer ouvir ou escolher não o fazer, numa rede de comunicação acessível e sem filtros. Pois estando nestas circunstâncias, não é que se fala, a propósito do que diz uma só alma do Alentejo e dos que cá nasceram e gostam de o lembrar, em queimar um livro ou espatifar o seu autor?
Não me admiro com quem destile um pouco de indignação como uma interjeição, e não me espanta que o faça quem costuma também ocupar a vida fora das modernas redes sociais a opinar sobre tudo o que lhe parece, mesmo não sabendo o que é. Posso perceber que o faça quem não tenha o poder de utilizar o poder que tem ao seu alcance de ignorar, e utilize, elaborando-a em palavras, a reação mais básica, e dizem que saudável, de quem atira um valente palavrão depois de uma topada do dedo mindinho do pé na esquina do móvel. Mas não entendo quem se dê a tanto trabalho por algo que quer ver desaparecer ou tornar insignificante.
Talvez seja por me sentir mais da Humanidade do que da longitude cruzada com a latitude. Talvez seja por gostar de me encontrar gestos, expressões, práticas que reconheço comuns a alguns com quem cresci, ou com quem convivo há anos, e diferentes de outros com quem escolho estar. Talvez por estar numa fase em que os filhos, frutos do que também deles fiz, normalmente optam depois de pensar e que, quando não o fazem, ou reconhecem uma sorte irrepetível ou reconhecem a má escolha em si antes de a procurar nos outros. Talvez por não me sentir ofendida quando me insultam aqueles de quem um elogio me faria desconfiar muito mais do que ao insulto. Talvez pela intolerância com as minhas imperfeições que me fazem tolerar as imperfeições dos outros, o que não quer dizer que me queira misturar com quem obviamente não se quer misturar comigo. Talvez por tudo isto, ou por algo que não consigo explicar, mais do que ouvir só mais um a dizer umas coisas, fiquei espantada com a onda de indignação contra um cronista que escreveu um livro e que alguns, ainda não o tendo lido, vilipendiam, dando-lhe um capital de queixa equiparado ao do nosso Nobel da Literatura em tempos de um tal Sousa Lara, num Abril dos idos anos de 1992, a propósito do Evangelho Segundo Jesus Cristo.

O Vergílio Ferreira, que tinha esse tremendo hábito de pensar e de, depois de o fazer, escolher bem as palavras para o dizer, escreveu uma vez este pensamento: «Para ajuizar do que é inferior é preciso ser-se superior. É por isso que um imbecil facilmente se julga um génio.» Duas frases que não deixam de fora nenhum dos protagonistas de mais um episódio em torno dos livros em Portugal. Isto diz bem da falta de educação, também literária, da nossa Democracia. Mãos à obra, então!