Deadline é o último prazo para a realização
de uma tarefa; mas é também o horário de fecho da edição de jornais ou
revistas. Quarta-feira passada, dia 7 de janeiro, deadline passou a ter mais um significado na minha gramática
pessoal, resultado do massacre de Paris. Mais um episódio desta estranha
terceira nova forma de guerra mundial, que conhecemos pelo nome de terrorismo.
O uso organizado do terror como recurso político existe há
milénios. Foi praticado pelos governos das cidades gregas como forma de guerra
psicológica contra populações inimigas; os imperadores romanos Tibério e
Calígula semearam o terror, tal como os membros da Santa Inquisição.
Robespierre e os seus adeptos, os encapuçados do Ku Klux Klan, as milícias
nazis, exemplos entre muitos outros. Nos últimos dois séculos, os Estados foram
ficando cada vez mais burocratizados e a morte apenas dos líderes não causava
as mudanças políticas desejadas. Os terroristas, que até então evitavam o que
nos habituámos a chamar os danos colaterais, passaram a usar os métodos que
conhecemos hoje. Só em 1972, a temática do terrorismo foi incluída pela
primeira vez nos debates da Assembleia Geral das Nações Unidas. Deles saíram
duas posições: de um lado o bloco ocidental que advogava a repressão, com um enfoque
liminarmente jurídico da questão; do outro, o Movimento dos Não-Alinhados e os
Estados comunistas, que defendiam a identificação e a eliminação das suas
causas, justificando um enfoque político. Em 1985, só 13 anos depois, houve a
primeira condenação do terrorismo por consenso e o enfoque jurídico passou a
prevalecer: o terrorismo deixou de ser legitimado por quaisquer que fossem as
motivações políticas. Não há desculpas.
As linhas com que os jornalistas do Charlie Hebdo traçavam nos cartoons
a sua opinião crítica política incomodavam muita gente. A uma outra escala,
obviamente, como fazem todas as críticas até, por exemplo, as rubricas como as
crónicas de opinião da Diana. A crítica, sobretudo em público, incomoda não
apenas os que se sentem por ela atingidos, como até pela própria expressão de
forma dessa crítica, mesmo quando dela não se discorda. Os cartoons, uns mais explícitos outros mais velados, quase todos
metafóricos, são de leitura mais direta do que as palavras alinhadas em frases
e parágrafos onde também, ainda assim, o equilíbrio entre o que é expresso e o
que é subentendido, permite níveis vários de interpretação. Nenhuma dessas
linhas justifica porém o crime, nem quando são provocatórias, quando se vive
numa sociedade em que a liberdade é um valor e tem um sentido vivido por todos.
Um sentido que não exclui a defesa de uma honra ofendida ou até só tocada, como
o provam os inúmeros casos de processos na justiça, uma luta possível em que se
discute, aí sim, o limite da liberdade de imprensa, ou até de expressão. E que apenas
é possível quando os dois lados dão a cara, sem cobardia (que não é crime, só
aleijão) acoitada em anonimatos.
As linhas do Charlie
Hebdo foram linhas mortais. Deadlines.
Para quem as desenhou, mas também para outros que apenas ali estavam nas suas
diversas funções. Foram todos danos colaterais, porque os cartoons não morreram. Nem o Charlie.
Estará até mais vivo do que nunca. E o terror, esse, caberá a cada um de nós,
europeu eventualmente a sentir-se ameaçado, vencer, continuando a viver como se
ele não existisse. Se lhe cedermos, o nosso deadline
chegará mais cedo e deixaremos os nossos planos e as nossas vidas
interromperem-se. Devemos isto às vítimas que caíram às mãos dos terroristas,
sejam loucos, fanáticos, idealistas, homens de fé, de crenças, de ideias
feitas. Sejam eles aquele cujo dedo prime o gatilho ou o que, à distância, lhes
lê a cartilha por onde aprendem a ser assim. Não podemos tornar-nos todos, nem
daqui da aparente pacatez da planície alentejana, vítimas do terrorismo. E é por
isso que todos somos Charlie.