13.10.12

IMPLANTAR

Na manhã do dia 5 de outubro de 1910, o embaixador da Alemanha saiu à rua com uma bandeira branca a pedir tréguas para que os cidadãos estrangeiros residentes em Lisboa pudessem sair da cidade. Grupos de soldados monárquicos, julgando que a bandeira branca significava que os oficiais se tinham rendido, decidem largar armas e confraternizar com os republicanos. Implantou-se definitivamente a República, com a ajuda deste erro de comunicação.
 
No ano em que comemorar a Implantação da República parece ser um luxo a que deixaremos de ter direito no futuro, muito tem implantado o Governo de Portugal! Implantou bandeirinhas de Portugal nas lapelas dos senhores ministros e restantes membros do executivo governamental. Implantou medidas de austeridade que parecem estar a ser feitas à semelhança dos iogurtes light que persisto em comer e que não têm tido o efeito anunciado ou previsto, não sei à base de que estudo científico-académico, na redução das gorduras. Implantou também uma espécie de caos nas mentes e almas mais extremistas que, em meu entender, poderão ser parte de todo um programa de implantações em que as contestações mais violentas virão a reverter em favor do próprio governo. É que eu continuo a ouvir dizer por aí que do que nós precisamos é de um outro Salazar que “ponha mão nisto”. Aliás, até já se viram figuras relevantes de um dos partidos mais alinhados com a contestação na rua serem insultados nas próprias manifestações. Como naquela historieta, que o meu avô me contava como se tendo passado com ele, de em plena procissão ter atirado com uma pedra ao ar, ter fugido e a pedra ter vindo aterrar na sua própria cabeça, como que por milagre.
 
Se há um milhão de cidadãos que persistentemente sai à rua para contestar, implantando um hábito que parece-me ou cairá num extremo da banalização rotineira, ou num outro extremo da violência que mata gente, haverá cerca de nove milhões de portugueses que continuam encurralados entre várias movimentações e implantações, a assistir aflitos ao desenrolar de um filme em que contra vontade têm de participar. Recusaram um governo socialista, elegeram um de coligação de direita que parece estar a desiludi-los (digo parece porque não sei quantos dos que o elegeram assim o pensam) e assistem a piruetas de discursos e moções que continuam a querer atingir o partido desse governo anterior, em requintadas manobras de campanha para umas eleições que, mesmo que alguns esperem para breve, normalmente demorariam três anos a acontecer. Implantou-se por isso um clima que vai desde o inovador “se estar nas tintas para as eleições” ao costumeiro “rua, já!”.
 
E implantou-se um ódio aos políticos, como se neste governo eles não fossem relativamente menos dos que os “ministros-técnicos” que o PM escolheu para ministérios estratégicos. Implantou-se um ódio aos partidos como se não fossem estas associações lugares em que se reúnem cidadãos oriundos da sociedade civil, pessoas de boa ou má vontade, como as há em toda a parte, numa semelhança que, apesar de si mesma, não faz de todos iguais uns aos outros, nem mesmo dentro do mesmo partido.
 
Há 102 anos um representante da Alemanha em Lisboa, tão por acaso como Colombo descobriu a América, tornou a Implantação da República um acontecimento menos sangrento do que poderia ter sido. Hoje já não precisamos da alemã Merkel para instilar os ódios porque o PM se encarrega de, não tão por acaso quer-me parecer, criar o ambiente propício a que algo de mais tenebroso possa acontecer. Implantou-se em mim um receio de que tudo isto dê para o torto ainda mais torto, aquele em que morrem pessoas e em que ao clima de violência suceda uma terrível opressão de que os relatos históricos e a memória dos ainda vivos nos devem lembrar de quando em vez. E esta é a vez.