10.4.12

Quem não tem padrinho, morre moiro

Passou-se mais uma Páscoa, a altura do ano em que se comemoram os padrinhos. Digo “comemoram” porque é por agora que muitos se lembram deles, padrinhos e madrinhas, esquecidos que andam o resto do ano destas responsabilidades que a igreja católica nos arranja, mesmo quando a prática da fé é intermitente ou mesmo já inexistente. E a propósito da figura do padrinho lá encontrei um provérbio e diz ele que «quem não tem padrinho, morre moiro». Para além da xenofobia que o provérbio deixa transparecer, apenas desculpável porque é antigo e reflexo muito mais de guerras territoriais do que de outra coisa, padrinho e afilhado é uma relação que cresceu muito para além da tradição. Melhor, recriou-se noutra tradição, que terá o seu expoente máximo de utilidade prática e vital no meio mafioso, e que mais do que qualquer ligação entre os mundos, terreno e sagrado, é muito do quotidiano e da vidinha de cada um no dia-a-dia. Não será preciso aqui explicar que a figura do padrinho e do apadrinhamento, mais do que a da madrinha que terá eventualmente, e à revelia de qualquer plano de igualdade, outros contornos mais bondosos na sua essência, se liga ao obscuro universo da cunha e do favorecimento mais ou menos lícito. Sai mesmo quase, diria eu, do universo familiar para o do combate de machos que lutam para ganhar o lugar no território. E vistas assim as coisas quase voltávamos ao tempo da Reconquista… Ter um padrinho será ter alguém que, mais conhecedor das coisas do mundo, ajuda o afilhado a integrar-se nesse mundo. O aspeto educativo dessa relação torná-la-ia perfeita com a declaração de autonomia do afilhado em relação ao seu padrinho, terminada que estivesse a integração. E o dever de um afilhado será o de utilizar esses ensinamentos que lhe foram transmitidos, ficando por isso reconhecido ao seu padrinho. A recompensa de um e outro será o sucesso da aplicação desses ensinamentos e consequente felicidade do apadrinhado, parece-me. O problema, para mim claro, é que de educativo e pedagógico, no universo do tráfico de influências, o apadrinhamento tem muito pouco. É uma relação de poderes: entre o poderoso padrinho e o obediente afilhado, mas também entre padrinhos. Uma relação que se prolonga, que não é de troca de favores, mas de dívida eterna e cobrável, sem prazo nem vencimento definidos. Num caderno de regras conhecido e reconhecido por padrinho e afilhado, estas relações são para a vida e promovem muita coisa, exceto a autonomia das partes. Por isso é que na tradição mafiosa e outras afins, quando o sangue é quente e os valores da vida baixos, esta autonomia só se dá ou conquista depois de umas trocas de tiros. Por outro lado, dizer-se que se tem um padrinho ou apadrinhar alguém é sempre uma sensação de ser muito útil e único no mundo, de ser importante, uma necessidade humana, compreensível se pensarmos que, atualmente, tudo e todos apregoam que para se gostar dos outros temos de gostar primeiro de nós, em hinos e loas à autoestima que, aparentemente, nos des-deprime, quando, se calhar, a “depressão” chegou com a frustração, e ao percebermos que vencer na vida custa e não é para todos. Além de que há relações que, parecendo-se com a de apadrinhamento não o são nos sentidos anteriores porque relevam das idiossincrasias do relacionamento humano, tendo em conta que nenhuma das partes tenta daí retirar vantagens, colocando-se em situação de privilégio. São comuns e, vulgarmente, dão resultados saudáveis porque mais do que na relação de dependência assentam na relação de confiança. Eu cá que nunca fui madrinha de ninguém (a não ser de dois casamentos que, por sinal, acabaram em divórcio, mas isso não se comemora na Páscoa) acho que preciso de construir uma “carta ética do amadrinhamento” para alguma vez o ser. Saber bem no que me vou meter, quais os princípios que deverei seguir, e aceitá-los se não colidirem com os meus próprios princípios em que me educaram e me eduquei. Para já, e no exercício de funções públicas, conheço e tento seguir com rigor os princípios éticos da administração pública, que dizem logo a abrir que «Os funcionários [se] encontram (…) ao serviço exclusivo da comunidade e dos cidadãos, prevalecendo sempre o interesse público sobre os interesses particulares ou de grupo». Será isto acumulável com as funções de uma madrinha?