4.4.12

A leitura, como a comida, não alimenta senão digerida

No outro dia foi dia da poesia e não tarda nada será o do livro, momentos em que se multiplicam sessões de leitura pública promovidas por diversas iniciativas. Ao contrário do que muitos ainda dizem, eu cá acho que nunca se leu tanto como hoje em dia. Não são livros, nem será literatura, o suporte e a matéria dos leitores de hoje. Mas é leitura… em quantidade. O desenvolvimento da visualidade, por oposição ou complemento da velhinha oralidade, tem-nos tornado mais disponíveis para ler o texto escrito, para além do texto icónico ou da imagem não-verbal. Lemos mais em silêncio, por oposição à leitura sussurrada que indicava inexperiência no ato de ler. O processo de descodificação do que está escrito, isto é, de entendermos o que diz efetivamente o texto que se lê, às vezes exige que o leiamos com o som da voz, para além do gesto do olhar ou dos dedos que percorrem o impresso. E isso é ainda mais urgente quando se lê poesia. Fruto da democracia, ler é, então agora, um ato quase natural, e longe vão os tempos em que encontrávamos gente mais idosa no supermercado a pedir que lhes lêssemos esta ou aquela informação do rótulo de um produto. Esta democratização do acesso ao texto escrito permite-nos, para além de comunicarmos à distância e no tempo, que é no fundo uma das principais razões de ser da escrita, permite-nos a todos e todas ter também mais acesso à informação, mas também à contra ou desinformação. Tantas vezes lemos uma coisa e o seu contrário, quando factos são interpretados e expressos por opinião que os interpretam como se de textos literários se tratassem e, por isso, com significados plurais que encontram e desencontram sensações e emoções. E é muito curioso como vistas assim as coisas, e sobretudo de factos políticos, se fazem “leituras”, sendo que leitura passou então a ser sinónimo de opinião. E é por isso que o provérbio que diz que «A leitura, como a comida, não alimenta senão digerida» me parece de uma sabedoria inigualável. É que a leitura, mesmo leitura, passou então a tornar-se um ato tão corrente e banal que nalguns momentos se assemelha, e pegando na mesma área de comparação, à fast food. Não é que de vez em quando não tenha de ser, mas lá que não é grande alimentação para o espírito lermos sem pensarmos, nem que seja um pouco, sobre o que lemos ou sobre a maneira como nos dão a ler determinado facto, não é. Ler mesmo é tentar ler também nas entrelinhas, é estar atento a cada substantivo, adjetivo e verbo e o lugar que cada um destes ocupa numa frase ou num parágrafo, e a banalização de encararmos o que lemos sem questões faz muitas vezes com que percamos o sentido da crítica e de sermos, de facto, bons leitores com oportunidade de formarmos uma opinião. Às vezes as crianças, com aquele olhar inaugural sobre o mundo que alguns poetas também têm, questionam-nos sobre o sentido do que dizemos ou lemos de forma desarmante, o que nos leva a procurar, lá está, um sentido mais preciso do que é dito ou escrito. Há, pois, que não perder (quando vale a pena perder tempo com assunto por que nos interesse, claro!) a capacidade de nos interrogarmos melhor sobre os sentidos que a linguagem verbal, oral ou escrita tanto faz, nos permite ter. Olharmos um texto com olhos de ver é lê-lo com atenção, e isso ajudar-nos-á olhar o mundo nele refletido também dessa maneira e entendê-lo melhor, ver-lhe os detalhes e vivê-lo melhor. E é por isso que, para mim, esta leitura, tantas vezes feita de conversa em torno do que se lê, é tão importante.