4.12.18

Uma feira onde morre gente na estrada


Tenho uma amiga que, em tempos, quando rematava as conversas sobre as múltiplas disfuncionalidades de Portugal, assim um todo para designar partes, exclamava: Portugal é uma feira onde morre gente na estrada! E tinha razão.

Recuperados os corpos do desastre na estrada entre as pedreiras de Borba, que agora descansem em paz e que as famílias se despeçam nas cerimónias que ajudam nas despedidas definitivas, só agora me parece o momento de passar às conversas a sério sobre o apurar de responsabilidades e de quem terá de ressarcir os danos, aqueles que apenas cobrem uma ínfima parte do que deve valer uma vida, equação impossível de dar conta certa. Só agora, porque até agora, tudo - à excepção da informação sobre o andamento das operações de resgate - tudo o que pudesse ser dito, para além do lamento pela perda de vidas e o que apressasse as ditas operações, me pareceu um já demasiado vulgarizado macabro espectáculo de abutres em pleno banquete.

Mais uma vez, e desta quase propositada e simbolicamente numa estrada de uma povoação famosa na região pela sua Feira anual, as imagens e reportagens informativas atraíram a montagem do espectáculo: uma feira onde morre gente na estrada... Rapidamente tantos se precipitaram para participar que, inevitavelmente, se desumanizou aquilo que era tudo, ao que parece, em defesa de seres humanos, os cidadãos eleitores portugueses. Desumanizou-se para se transformar num trampolim de oportunismos vários, com figuras disfarçadas (ou nem isso, assumindo mesmo a função) de carpideiras. Falo dos que são, e exercem o poder de serem, contrapoder. Numa altura em que apenas, em meu entender, o que importava era exigir que se terminassem as operações que estão só agora terminadas. E em segurança, sobretudo, já agora.

E agora, finda essa parte, agora sim, quando a carne e os ossos já se enterraram, que não se despeguem todos os sentidos do rumo que leva o apurar das causas, das responsabilidades de quem poderia e deveria ter evitado um desastre naquela dolorosamente bela paisagem. Ali, onde a marca, que fere, da pegada humana não pode ser apagada com um sacrifício. Nem com o esquecimento de quem, ainda que por acidente e não por vontade própria ou alheia, entregou a vida à terra esventrada. Não é assim que se tratam os vivos, e muito menos os mortos que já não estão cá para serem vistos e ouvidos. Apurem-se as responsabilidades deste, como de outros casos, e peça-se então que todos cumpram as suas: as instituições nas pessoas que por elas dão e se propõem a dar a cara, e o cidadão que espera que cumprir as suas responsabilidades lhe não ponha, pelo menos, a vida em risco.