11.12.18

As duas faces da arte de nos tornarmos prescindíveis


Como uma moeda a sério e que pode circular por aí - porque não está colada junto a outra que mostra a cara ou a coroa oculta numa colecção - há também dois lados não confundíveis de exercer, ainda que com resultado aparentemente semelhante, a arte de nos tornarmos prescindíveis. Só um deles resulta mesmo da arte como saber-fazer. É que ou nos tornamos prescindíveis pela vontade que criamos nos outros de nos verem pelas costas; ou nos tornamos prescindíveis porque cumprimos cabalmente com o que o provérbio africano dita quando diz que o que importa não é dar o peixe mas ensinar a pescar. E se quisermos acrescentar uma pitada de cor local lusa ao caminho certo desta arte, poderemos talvez dizer que a obra-prima é aquele, ou aquela, que mesmo já se tendo tornado prescindível porque já fez tudo o que podia fazer e poder sair de cena, ainda deixa saudades.

Enquanto por terras mexicanas circulava toda a movida da festa da Cultura portuguesa, central ou periférica, mas invejavelmente constituída por privilegiados convidados, a representante do Governo, com a pasta da Cultura mas que também tutela os assuntos da Comunicação Social, usava os microfones desta para cometer contra a mesma uma realíssima e indesculpável gaffe (e estou a ser simpática ao chamar-lhe isso); enquanto isso acontecia, há um mesmo par de semanas, dentro de portas, entregavam-se os Prémios Gazeta da Comunicação Social pela mão do PR e com avisos para a profunda crise que se escava neste sector imprescindível ao bom funcionamento da Democracia e da vida em Liberdade.

A arte de nos tornarmos prescindíveis, ao que estou em crer, exprime-se e dá-se a ver, em dois campos diferentes e mesmo opostos: o da vida pessoal onde as relações se revestem preferencialmente de emoções; e a da coisa pública em que parecendo tão humano exprimir-se um lado afectuoso, que até não é desprezível, importa sobretudo que se imprimam nas acções e nas palavras que as acompanham uma frieza que evite sobretudo quer o disparate, quer o desperdício. E estes episódios coincidentes, mas talvez não por coincidência, vieram também fazer-nos pensar que nem só ao indivíduo parece abrir-se o risco de se tornar prescindível pelo pior dos caminhos, ou seja, sem arte nenhuma. É que não basta encostarmo-nos a um determinado estatuto, ou ao prestígio de um cargo ou de uma corporação, que respectivamente assumimos ou integramos, e com isso julgarmo-nos imprescindíveis, para passarmos a ser bons na outra difícil arte. Esta, como a Arte (com maiúscula), não se contenta apenas com vontades nem depende de efeitos por osmose. Antes requer uns imprescindíveis trabalho, empenho e bom-senso. 

O que nos pode ter relembrado a coincidência de há duas semanas é que termos consciência desta arte de nos tornarmos prescindíveis parte de um bom princípio, ditado por adágio popular, e que não é o hábito que faz o monge. Será até preciso, digo eu, uma certa vocação e, mesmo que muitos sejam competentes, nem todos se conseguem livrar da tentação de tentarem ser imprescindíveis, ao quase ponto da beatificação em vida, e atingir o que acredito ser uma difícil meta coerente da condição humana, sem falsas modéstias: tornarmo-nos prescindíveis.