4.4.17

O aeroporto, o busto e o zeitgeist

O busto não é o tipo de peça de arte que mais me agrada. A imobilidade da expressão em 3D, mesmo quando colorida por tons ditos naturais, lembra-me uma mortalidade que não se aceita. Deve haver muitas técnicas que evoluíram e distinguem, nas características das obras, as épocas de criação e o estilo dos seus criadores. Essa é, aliás, a opinião que mais conta quando alguém, perito, ajuda um leigo interessado a apreciar o que quer que seja. A outra opinião, uma questão de gosto, fica-se pela emoção, necessária mas volúvel, sempre mais sujeita a declarações sem argumento.
Dos bustos que conheço, os que fogem ao chamado “clássico” são sempre objectos criativos e estéticos mais suculentos enquanto tema para discussão, do que as figuras que retratam para uma posteridade sempre efémera. São como os prémios, títulos e galardões: há os que enaltecem a quem são atribuídos, há os que promovem quem os atribui. No fundo, bustos, prémios, títulos e galardões são metáforas de qualidades fragmentárias de um indivíduo ou uma instituição. Vivemos aliás numa época em que até as más qualidades têm direito a prémios com nome e cerimónia própria, como os Razzies, em português Framboesa de Ouro.
É neste espírito de época, o tal zeitgeist, que um baptismo de aeroporto e um busto como legenda desse mesmo acto, podem ser criticados. Eles são uma parte, incontestavelmente coerente, do que se quer dessa época e desse espírito que fique para a dita posteridade. Eles revelam a forma como as instituições se comportam, seja num rectângulo ao fundo de um continente ou numa pérola no meio do oceano. Eles revelam os destinatários previstos da esmagadora maioria dos actos públicos, sejam de que espécie forem. Eles revelam o poder ou a incapacidade de fazer valer argumentos. Eles revelam que aquilo a que chamamos Povo, depois de todo um século que foi o anterior lhe ter sido dedicado, não é uma massa uniforme, mas um caleidoscópio desconcertante, por vezes desconcertado, cuja identidade múltipla é usada, como sempre o foram os grupos, por quem lidera e se constitui como uma elite, mesmo quando saída, por sufrágio, da vontade e da própria matéria que é o dito Povo.
Posto isto, depois da ironia, do ensimesmamento, da autoparódia definitivamente instalados no pós-modernismo popular, e a que podemos chamar também cultura no seu sentido de ciência do costume, tudo o que se passou, para ficar durante um tempo dito para sempre numa gare aonde aterram meios de transportes aéreos, é de uma louvável coerência. Nem que para muitos seja só e apenas isso. Uma coerência consonante com o ano da graça de 2017.

Se fosse noutra época, e fazendo um exercício de equivalências empíricas e sensíveis, estaríamos talvez a falar do baptismo de um bonito apeadeiro de comboio numa bela paisagem que abre, e bem, os braços para receber visitantes; estaríamos a assistir ao apadrinhamento por parte de um defunto monarca, nobre, militar, político, artista (talvez ainda nenhum actor ou nenhuma actriz), engenheiro, médico ou professor, a quem os que governam decidiram (sempre eles, claro, que é para isso que existem, pese embora as diferentes formas de o fazerem), para além do nome, contratar ao abrigo da velha prática do mecenato, quem de renome retratasse o morto em vivo, de pedra ou bronze. No século XXI, em Portugal (mas não só), onde o futebol é a prática que mais espectadores indiferenciados reúne pontualmente para entoar uníssonos, onde nasceu um dos melhores exemplos que proporciona essas reacções, onde os aeroportos são territórios de passagem de multidões, onde o simultaneamente retratado e padrinho está literalmente alive and kicking e tem uma palavra a dizer, e um artista autodidacta, a quem a sociedade inteira disse que lhe era permitido realizar tudo o que sonhasse, o que se passou na Madeira não me levanta dúvidas. E devo acrescentar que não me desagrada, embora tenha tido em mim o tal efeito Coca-Cola e, primeiro, estranhei. O resto? O resto é só efeito de um zeitgeist que teima em ficar, contraditoriamente, para a posteridade.