O
busto não é o tipo de peça de arte que mais me agrada. A imobilidade da
expressão em 3D, mesmo quando colorida por tons ditos naturais, lembra-me uma
mortalidade que não se aceita. Deve haver muitas técnicas que evoluíram e
distinguem, nas características das obras, as épocas de criação e o estilo dos
seus criadores. Essa é, aliás, a opinião que mais conta quando alguém, perito,
ajuda um leigo interessado a apreciar o que quer que seja. A outra opinião, uma
questão de gosto, fica-se pela emoção, necessária mas volúvel, sempre mais
sujeita a declarações sem argumento.
Dos
bustos que conheço, os que fogem ao chamado “clássico” são sempre objectos criativos
e estéticos mais suculentos enquanto tema para discussão, do que as figuras que
retratam para uma posteridade sempre efémera. São como os prémios, títulos e
galardões: há os que enaltecem a quem são atribuídos, há os que promovem quem
os atribui. No fundo, bustos, prémios, títulos e galardões são metáforas de
qualidades fragmentárias de um indivíduo ou uma instituição. Vivemos aliás numa
época em que até as más qualidades têm direito a prémios com nome e cerimónia
própria, como os Razzies, em português
Framboesa de Ouro.
É
neste espírito de época, o tal zeitgeist,
que um baptismo de aeroporto e um busto como legenda desse mesmo acto, podem
ser criticados. Eles são uma parte, incontestavelmente coerente, do que se quer
dessa época e desse espírito que fique para a dita posteridade. Eles revelam a
forma como as instituições se comportam, seja num rectângulo ao fundo de um
continente ou numa pérola no meio do oceano. Eles revelam os destinatários
previstos da esmagadora maioria dos actos públicos, sejam de que espécie forem.
Eles revelam o poder ou a incapacidade de fazer valer argumentos. Eles revelam
que aquilo a que chamamos Povo, depois de todo um século que foi o anterior lhe
ter sido dedicado, não é uma massa uniforme, mas um caleidoscópio desconcertante,
por vezes desconcertado, cuja identidade múltipla é usada, como sempre o foram
os grupos, por quem lidera e se constitui como uma elite, mesmo quando saída,
por sufrágio, da vontade e da própria matéria que é o dito Povo.
Posto
isto, depois da ironia, do ensimesmamento, da autoparódia definitivamente
instalados no pós-modernismo popular, e a que podemos chamar também cultura no
seu sentido de ciência do costume, tudo o que se passou, para ficar durante um
tempo dito para sempre numa gare aonde aterram meios de transportes aéreos, é
de uma louvável coerência. Nem que para muitos seja só e apenas isso. Uma
coerência consonante com o ano da graça de 2017.
Se
fosse noutra época, e fazendo um exercício de equivalências empíricas e
sensíveis, estaríamos talvez a falar do baptismo de um bonito apeadeiro de
comboio numa bela paisagem que abre, e bem, os braços para receber visitantes;
estaríamos a assistir ao apadrinhamento por parte de um defunto monarca, nobre,
militar, político, artista (talvez ainda nenhum actor ou nenhuma actriz),
engenheiro, médico ou professor, a quem os que governam decidiram (sempre eles,
claro, que é para isso que existem, pese embora as diferentes formas de o
fazerem), para além do nome, contratar ao abrigo da velha prática do mecenato,
quem de renome retratasse o morto em vivo, de pedra ou bronze. No século XXI, em
Portugal (mas não só), onde o futebol é a prática que mais espectadores
indiferenciados reúne pontualmente para entoar uníssonos, onde nasceu um dos
melhores exemplos que proporciona essas reacções, onde os aeroportos são
territórios de passagem de multidões, onde o simultaneamente retratado e
padrinho está literalmente alive and
kicking e tem uma palavra a dizer, e um artista autodidacta, a quem a
sociedade inteira disse que lhe era permitido realizar tudo o que sonhasse, o
que se passou na Madeira não me levanta dúvidas. E devo acrescentar que não me
desagrada, embora tenha tido em mim o tal efeito Coca-Cola e, primeiro,
estranhei. O resto? O resto é só efeito
de um zeitgeist que teima em ficar,
contraditoriamente, para a posteridade.