18.12.12

ATRACAR

Parece que o navio «Funchal», atracado em Lisboa, tem servido desde há dois anos de abrigo a sete homens que nele trabalharam e que agora, sem ordenados nem nenhuma espécie de finalização de contrato normal, lá continuam a viver. Tendo eu tido familiares no então chamado Ultramar, foram algumas as viagens que fiz em grandes navios, embora fosse tão pequena que só delas tenho alguns lampejos na memória. Mas a viagem no «Funchal» até à ilha da Madeira, onde fui fazer a 3ª classe porque foi lá que a minha mãe, professora, se efetivou, marcou-me como a minha primeira experiência de saídas e daquilo a que chamamos as “borgas”. Dois dias e duas noites de viagem, com a autoridade materna trancada no camarote vítima de um valente enjoo non-stop, o corrupio de uma assisada miúda de 8 anos, num espaço confinado mas cheio de propostas tão atraentes, foi memorável.

A imagem deste paquete, seguramente mais pequeno do que me parecia então, vazio do esplendor que estes barcos têm sempre, às escuras e ao frio, habitado por sete homens, parece-me um esboço de guião de filme do Kubrick, à escala do Shining. E “atracam-se” em mim uma catadupa de muitas outras imagens fantasmagóricas.

Como é possível num país com leis de trabalho bem claras deixar, aparentemente, ao abandono sete trabalhadores nestas condições. É que se não usufruíram de todos os direitos que lhes eram devidos em caso de despedimento, também não têm o direito de viver assim num paquete por conta deles. Não estou, obviamente, a invejar-lhes supostos luxos que não têm, mas parece-me isto muito pouco claro e mesmo inaceitável.

O sindicalista que falou em nome da Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores do Mar disse que iam «tentar assegurar os salários e despesas das pessoas e, eventualmente, pedir indemnizações cíveis»; os proprietários, dois irmãos gémeos gregos não dizem nada; o comandante do navio diz que ficou sem cozinheiro desde 25 de Outubro, porque depois não forneceram mais mantimentos, que têm um subsídio diário, que também não é pago, que vão fazendo a alimentação do próprio bolso e que vão vivendo em comunidade, porque têm de estar todos juntos, desde o comandante até ao chegador da máquina; um reconhecido especialista em história naval considera que o "Funchal" vai acabar na sucata.

Que filme é este, pergunto eu? Que movimentos se seguem a esta notícia? Porque é que neste país tudo e mais alguma coisa que é notícia, exagero meu claro!, me parece agora cada vez mais saído de uma obra de ficção com contornos de qualidade duvidosos? Às vezes até fico à espera de acordar de um pesadelo… E se Portugal é um barco atracado na Europa à espera de ir para a sucata? Irra, que arrepio na espinha…