20.9.22

O que aconteceu

Os tempos estão quase bíblicos, com peste e guerra e seca e dilúvios, e pouco teve de divino o filme de recordações destas férias de Verão… Uso o adjectivo “divino” no sentido pagão, o que damos, por exemplo, a uma refeição daquelas para que, nas férias ou quando há tempo e ambiente, muitos nos reservamos. Mas também estas, se para uns têm efeitos espirituais, para outros caem todas juntas em cima dos corpos, a ocupar espaço. Uma maçada… 


A boa notícia é estarmos - quem escreve e quem ouve ou lê -  de volta às crónicas, para mais uma série, para mim a 13º, como o número dos mais importantes comensais da tradição judaico-cristã. Mas vejamos, assim telegraficamente, uma  pálida amostra dos muitos assuntos deste Verão, que podiam ter dado quase duas crónicas por semana.


A pedofilia na Igreja também católica a ultrapassar os soundbytes das regressadas romarias já turistificadas. A subida aos Céus em foguetão de quem quase entrou no “buraco de uma agulha” (se acreditássemos mesmo que o Paraíso existe e não está num punhado de contas milionárias de que uma só criatura pode gastar à tripa-forra). O Purgatório da ameaça de falta de gás, com impacto financeiro em tudo quanto dá luz e mexe, e os castigos em corte nos quilovolts que nos querem infligir, como se todos tivéssemos painéis publicitários acesos 24/24 horas nas janelas das nossas casas. E , por fim, a saída de Marta Temido, provavelmente farta dos rankings montanha-russa de popularidade de que a política vive (mais do que de políticas), deixando a Pizarro exactamente os mesmos problemas que a penúria do País, associada à cultura do desleixo no serviço público, que durarão até à tal vinda do Diabo, profecia sem novidade, nem pecado, e de sucesso mais ou menos adiado. Nessa altura, o Inferno será legitimado, o País ficará melhor e as pessoas pior. Tudo por culpa de outros: dos que gastaram o que não tinham para ir calando alguns e dos que vieram a seguir endireitar as coisas, sem medo dos gritos dos moribundos.


Do que à eternidade das almas diz mesmo respeito, deixando de lado o fim do conto de fadas da Rainha de Inglaterra que quase viveu “feliz para sempre”; fazendo por esquecer os macabros episódios políticos do coração monárquico feito em pickles e da urna republicana a servir para o voto angolano e para a exposição de desavenças familiares que não escolhem classes sociais, marcou-me que da poeta Ana Luísa Amaral já não tenhamos, demasiado cedo, mais versos novos de inquestionável literatura, embora continuemos a ter tantos poemas para usar como orações de aprender a sentir o Mundo e a Vida; já nos antípodas, tivemos uma promoção a autor de referência europeia um medíocre alinhador de palavras que consolam não-leitores, chagando a palavra “Literatura”.  O “meu” primeiro humorista também parou de envelhecer, e a eterização de Jô Soares trouxe-me à memória tantos dos momentos divertidos com os mesmo meus que já cá não estão; sou da tribo que crê que é só mesmo o humor que nos salva: o imprescindível amor está tristemente contrafeito e a contrafacção do humor é mal menor, só mau gosto. Um herói, ou pequeno deus da bola Chalana, que desaparece deixando à espreita, para quem tenha interesse em pensar sobre o assunto, o admirável esgoto do mundo da competição futebolística, negócio que tantos crentes assíduos de certas catedrais ajudam a alimentar. Sobretudo porque contaminam modos de estar tribais em sociedade, chegando até ao debate político, que está paupérrimo. E partiu Jean-Luc Godard e Javier Marías, e, e… Cronos implacável, a Arte a tentar fintá-lo. 


Dos incêndios talvez fale uma semana destas, já que não foram, nem serão, exclusivo da época estival 2022. E talvez, um dia, seja oportuno voltar ao tema da conciliação difícil das vidas pública e privada dos políticos, questão menor mas muito reveladora das mentalidades marcadas pelo fenómeno cultural mais relevante da Humanidade: lá está a religião… 


Perante tudo isto, o único remédio que encontro é procurar o tal “divino” à mesa das refeições e penitenciar-me do mal que me fazem, só a mim, pelo bem que me sabem, trazendo-me a felicidade ao céu do palato. Haja saúde e, claro, matéria da cor do deus com que se compram os melões…