23.2.21

Cuidadores e suspirosos

Há um longo texto, no Cancioneiro Geral do García de Resende, intitulado “O Cuidar e o Suspirar” que me pôs a cabeça em água no quarto ano da licenciatura, na “cadeira” de Literatura Portuguesa. É que a coisa, sendo alegórica, media em discursatas as forças entre os que se pretendiam melhores amantes: se os que andavam em silenciosos cuidados, ou os que suspiravam em alto e bom som. Nem uns, nem outros me pareciam condenáveis, era o exercício estéril de medir fraquezas que me irritava (ok, era só literatura e do fim do século XV).

Cuidar de quem é frágil é dos gestos mais nobres que instituições e indivíduos podem ter numa sociedade progressista e democrática. Se às instituições cuidadoras vai sendo dado o devido reconhecimento, aos indivíduos o caminho está ainda a fazer-se, julgo que em bom rumo, não sei se a bom ritmo. Mas o que me traz a este assunto, partindo de silêncios e suspiros de amor “desensofrido”, passando pelo inegável e urgente assunto social e humano, é a desenfreada utilização do cuidar como uma boa desculpa para o suspirar, em encenações que trocam os meios e os fins. Quem cuida do outro, fá-lo não pelo amor ao tipo de trabalho que se faz, normalmente muito duro, mas pelo resultado que esse cuidar tem no bem-estar da pessoa cuidada. Quem disser o contrário, está muito mais a centrar o cuidar em si e não no outro, mesmo concordando que as melhores condições dos cuidadores revertam em melhores resultados para os cuidados.

Cuidar de algo, ou de alguém, não é tratar da sua vida, nem fazer disso concurso entre os que já, no terreno, existem para tal. A menos, obviamente, que se trate de chamar para si as competências que esses não exercem da, que acham que é, a melhor forma. Não vale a pena é não dizer que ao fazer-se isso não se está a entrar num jogo de competir entre partes já constituídas, nas quais não se revêem e que, por isso, vão fazer outra parte ou partido, nada independente, por isso. É-se, nestes casos, dependente da posição de ir contra, certamente por razões válidas, até de assunção que dentro dos outros movimentos não se conseguiu fazer lá grande coisa. Acontece e, normalmente, a culpa não é só de um. Também não adianta muito vir dizer que o único interesse é o bem-estar do que se diz que se quer cuidar, julgando que ninguém está a ver que é o interesse próprio que está na ignição da máquina em marcha. Há, pois, que assumir dissidências e, preferencialmente, expor as evidências de que o movimento da marcha, em cuidados ou suspiros, é paralelo a de outros e não num palco ao lado. Ou é ou não é. Felizmente que nestes casos da coisa pública, não é como no assunto social e humano, e que quem está a precisar de cuidados não estará ansiosamente à espera de novos heróis ou salvadores. Tem os que escolher e a oferta não é pouca. Pode não ser grande coisa, mas talvez já tenha dado algumas provas do que é capaz.